domingo, 3 de março de 2013

Óscares, pipocas e amargos de boca ou os limites da liberdade de expressão

"E pronto, não é preciso procurar mais, está escolhido o terror da noite. Esta pequena, de seu nome Sofia Alves (podia perfeitamente ser a nossa Sofia Alves, que também é uma bimbalhona do pior) teve um surto de febre e, em delírio, decidiu apresentar - se assim na passadeira vermelha. Collant opaco, saia da Pimkie, uma camisola básica da H&M e o gorro do irmão mais velho que assalta carros à noite. Estou de boca aberta." (itálico meu)

 Foi assim que Ana Garcia Martins, de uma assentada, ofendeu três pessoas: Ana Sofia Alves, de 16 anos, Sofia Alves, actriz portuguesa e o putativo irmão mais velho da visada com o comentário [nem sabemos se tem, mas a Ana Garcia Martins também não e arriscou...].

As redes sociais e os blogues proliferam no mundo virtual e desde a nanotecnologia aos lavores da D. Antónia encontramos de tudo. Do mais famoso cientista ao cidadão anónimo, todos querem dar a conhecer ao Mundo o que pensam, sentem ou fazem. Uns para pura partilha do seu conhecimento outros almejando um pequeno momento de fama. Até aí, nada de censurável.

Todos escrevem e publicam imagens ao abrigo da liberdade de expressão que consiste no direito de cada um manifestar livremente opiniões, ideias e pensamentos. Este direito está previsto no artigo 37.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 10.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

E foi, supostamente, ao abrigo deste direito que a Ana Garcia Martins escreveu as palavras transcritas supra. Porém, a liberdade de expressão tem limites. Não vivemos isolados e as nossas palavras, ideias e pensamentos reflectem - se nos outros.

Um dos limites é o direito à honra, "uma das mais importantes concretizações da tutela e do direito de personalidade. A honra é a dignidade pessoal pertencente à pessoa enquanto tal, e reconhecida na comunidade em que se insere e coabita e convive com outras pessoas. O valor da honra, enquanto dignitas humana, é mais importante que qualquer outra e transige menos facilmente com os demais em sede de ponderação de interesses." [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.05.2010, disponível em www.itij.pt]

O direito à honra tem tutela civil - artigo 70.º, n.º 1 do Código Civil - e tutela penal - artigo 180.º e 181.º do Código Penal.

Acredito que assistir em directo à cerimónia de entrega dos óscares de Hollywood seja docemente embriagante e a Ana Garcia Martins goste de apreciar trapos e escrever sobre eles.
O que a Ana Garcia Martins não pode é enxovalhar publicamente uma jovem de 16 anos e, por arrasto, uma outra cidadã, actriz portuguesa e um suposto irmão mais velho da jovem de 16 anos.

Verdadeiramente ridículo é que hajam pessoas que saem em defesa da Ana Garcia Martins dizendo que ela pode escrever o que bem entender e que, a final, até apagou a publicação e pediu desculpas.
A Ana Garcia Martins tem direito a defesa, obviamente, mas não esta que jorra de mentes tão mal - formadas como as da própria, que entendem que um blog é espécie de mesa de café onde, entre amigos, tudo pode ser dito.
Por que não o é. Um blog é uma página de internet, acessível a todos e - por maior que seja o meu espanto que o desconhecia bem como a sua autora - o blog "A Pipoca mais Doce" parece ser muito conhecido no meio cibernauta dedicado às fofoquices e futilidades da moda.

Posto isto, é bom que as pessoas aprendam que uma conversa de café, privada, entre amigos, é uma coisa e um escrito num blog é outra coisa.
É bom que as pessoas aprendam que os seus direitos têm como limite os direitos de terceiros.
É bom que as pessoas aprendam que as palavras ditas ou escritas têm o infinito poder de atingir o íntimo dos outros e magoá - los.
É bom que as pessoas aprendam que (ainda) não vivemos num país sem lei e que a honra, o bom nome, a dignidade do ser humano têm tutela jurídica.
É bom que as pessoas aprendam que, além da censura moral, podem ter de abrir (e muito) os cordões à bolsa para indemnizar alguém que ofenderam mas que essa indemnização não apaga o sofrimento porque "a dor da alma é, sem receio de exageros, incomensurável." [Acórdão cit. supra]

Por fim, é bom que a Ana Garcia Martins aprenda que o valor de um ser humano não se mede pelo seu outfit. E a defesa da Ana Sofia Alves não será certamente o facto de ter um cancro, mas sim o facto de ser uma jovem com direito à sua honra, à sua dignidade pessoal e com o direito de ninguém a julgar pelos collants ou pelo gorro.